Sistema utilizado para definição e demarcação de terras indígenas e para áreas remanescentes de quilombos gera insegurança. Agropecuaristas dizem querer definição de regras, enquanto a bancada ruralista tenta reduzir poder do governo federal, medindo forças com a bancada dos povos indígenas

Dep. Luiz Carlos Heinze, presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA).

Quase 200 anos depois de se tornar nação independente, o Brasil ainda não consolidou sua estrutura fundiária. Indefinições legais quanto a quem pertence a propriedade, ou o não reconhecimento desse direito por parte de grupos, criam situação de insegurança, pois em alguns casos nem mesmo a escritura é garantia definitiva da posse.

Essa indecisão dá margem à manutenção dos conflitos. Reconhecimento e demarcação de terras indígenas e de áreas remanescentes de quilombolas são questões que fazem pressão sobre a espinha dorsal do sistema fundiário, produzem vítimas no campo e arranham a imagem do agronegócio brasileiro, principalmente no exterior.

Quanto ao tema terras indígenas, a novidade é a aceleração no ritmo da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215. Na prática, a PEC reduz o poder da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do governo federal nesse quesito e transfere para o Legislativo o direito de “aprovar a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e ratificar as demarcações já homologadas”.

Criada no ano de 2000 pelo então deputado Almir Sá, a PEC 215 tramitou a passos de tartaruga na Câmara Federal por 13 anos, até que no início de 2014 ganhou novo fôlego após a criação de comissão especial que irá examinar e emitir parecer sobre ela. Dentre os integrantes da comissão encontra-se o deputado Luiz Carlos Heinze, presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA).

No entender de Heinze, a proposta resgatará a justiça. Ele alega não ser correto que famílias legalmente instaladas em determinada área há cinco gerações estejam ameaçadas de perdê-la. “Não sou contra a demarcação, mas não concordo que um laudo antropológico derrube um direito de propriedade adquirido há mais de cem anos”, opina.

Gustavo Junqueira, presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB).

Para o presidente da FPA, o ponto fundamental da proposta é “descrever o marco temporal estabelecido na Constituição e reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que é outubro de 1988”. Outro item que o deputado considera importante no texto em discussão tem foco no compartilhamento de responsabilidades entre os poderes: “Quando se tratar de demarcação de terras indígenas, as resoluções do governo federal terão de passar pelo Congresso Nacional para evitar decisões unilaterais, muitas vezes com interpretação ideológica”.

Opinião contrária manifesta o deputado federal Padre Ton, da Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas. “Entramos no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a PEC 215 alegando sua inconstitucionalidade. Já obtivemos parecer favorável, mas o ministro informou que não se pode paralisar as discussões”, revela. Ele justifica sua atitude alegando “não ser da competência dos parlamentares realizar demarcações”. “Ademais, haveria desequilíbrio de forças, pois a Frente da Agropecuária conta mais de 200 deputados, enquanto a Frente dos Povos Indígenas tem apenas dez. Na prática, o que ocorreria seria o fim das demarcações”, enfatiza.

Mas existem outros pontos que preocupam os agropecuaristas. Segundo Gustavo Diniz Junqueira, presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB), um dos aspectos principais dessa conduta está arraigado na cultura de muitas autoridades e também repercute negativamente no exterior: “a falta de respeito aos contratos”. O presidente da SRB chega a dizer que em muitos casos o que está ocorrendo pode ser taxado de “expropriação”, pois é executado “sem reparo ou benefício”.

Diálogo – O Padre Ton garante ser favorável ao diálogo para tratar dessa questão. “Atualmente não existe indenização porque as terras destinadas aos índios não são deles, as recebem apenas para usufruto. Essas terras pertencem à União.” Pela sua explicação, é compreensível, assim, que o governo federal não pague por algo que pertence ao próprio Estado brasileiro. Mas ele quer encontrar a solução “Tenho sido uma pessoa de diálogo, inclusive para tratarmos desse assunto. Em primeiro lugar, temos de regularizar o Artigo 231 da Constituição, que trata dos povos indígenas de maneira mais ampla”, propõe.

A princípio, ele reconhece a impossibilidade de demarcar, nos Estados do Centro-Oeste, Sudeste e Sul, áreas do mesmo tamanho daquelas concedidas no Norte, “onde existem terras indígenas do tamanho de um Estado”.

O presidente da SRB pede bom senso na discussão e sensatez nas decisões finais, posto que há muita gente honesta sendo prejudicada. “O conflito não interessa. Queremos que o problema seja solucionado sem causar tantas dores para todos os lados. Ademais, falta pouco para o encerramento desse processo”, ele diz, lembrando que 90% das áreas indígenas já foram demarcadas.

Da mesma forma, o deputado Padre Ton também fala em sensatez e insiste nos entendimentos. “O Brasil tem terra suficiente para índios, quilombolas e produtores. Se deixarmos o conflito e nos concentrarmos no diálogo, encontraremos a solução.”

Marise Hosomi Spitzeck, sócia do escritório Demarest Advogados.

À margem dos debates emotivos que caracterizam as discussões desse tema, a advogada Marise Hosomi Spitzeck, sócia do escritório Demarest Advogados, de São Paulo (SP), aborda o assunto com pragmatismo. Ela vê nobreza no artigo 231 da Constituição Federal ao reconhecer aos povos indígenas “o direito às terras tradicionalmente por eles ocupadas”.

Contudo ela é inflexível a respeito da necessidade de “uma justa indenização” aos proprietários desalojados. Ao detalhar sua tese, Marise recorre a fatos históricos e relembra que a ocupação de grande parte dessas áreas hoje objeto de desapropriação foi estimulada pelo próprio governo federal nas décadas de 1960 e 1970.

Na época, os novos donos ganharam a terra, mas tiveram de desbravar regiões, investir na compra de maquinário e contratação de pessoal. Enfim, modificaram a paisagem e começaram a produzir.

Para a advogada, por isso tudo é preciso conciliar interesses. “Aqueles que estão regularizados, ou seja, que têm título de propriedade e pagam impostos, não podem perder a terra de um dia para outro e sair sem nada. O valor de tudo o que foi realizado tem de ser reconhecido e indenizado”, pondera.

Profissional com amplo conhecimento da causa, Marise reconhece que impedir as desapropriações atualmente é muito difícil, uma vez que “o princípio do contraditório é praticamente inacessível”. Sua expectativa agora está voltada para a possibilidade de a PEC 215 flexibilizar o poder e reconhecer direitos.

Apesar das dificuldades a serem encontradas, ela recomenda aos proprietários que insistam na busca da justiça. “O acesso ao Judiciário é um direito de qualquer cidadão”, lembra. E orienta: “Da forma como vem sendo feita a desapropriação, o dono pode recorrer e pedir indenização pelas perdas financeiras e por danos morais”.

Mais polêmica que o tema terras indígenas é a questão dos quilombolas. O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias reconhece o direito à propriedade definitiva da terra aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando a terra. E cabe ao governo conceder-lhes os títulos.

Líderes ruralistas afirmam não ser contra esse direito, até porque está na Constituição. Mas reclamam dos procedimentos que levam à desapropriação. Eles dizem que o processo é iniciado sem o conhecimento do dono da terra, que somente é notificado e fica com pouco tempo para a defesa.

No seu site na internet, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) publica um quadro com o passo a passo para “Regularização Quilombola”. Esse roteiro contém sete passos, porém o decreto presidencial que autoriza a desapropriação ocorre na quinta etapa. O processo é aberto para contraditório no terceiro passo (veja link para o site e o quadro no final desta matéria).

“Na minha visão, isso é surreal. A maior parte do processo corre à revelia do grande interessado e prejudicado dessa história”, reclama Gustavo Junqueira, da SRB.

Dep. Padre Ton, da Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas.

Por se tratar de um direito constitucional, que determina ao governo federal o dever de distribuir as terras e os títulos, não há muito que o produtor possa fazer para impedir as desapropriações. Nem mesmo por meio de liminar. “Quando eu não tenho conhecimento, não posso me precaver com liminar”, adverte a advogada Marise Spitzeck. No caso, nem sempre o produtor está informado sobre o início do processo. “Mas no primeiro momento que ele tomar conhecimento pode recorrer à Justiça para participar do processo na Fundação Palmares, por exemplo.”

O Padre Ton também pede justiça, mas para os descendentes de escravos. “O Brasil precisa pagar dívidas históricas”. Ele chama atenção para a grande quantidade de processos judiciais sobre essa questão, e também conclama ao entendimento. “Conheço o problema com profundidade, pois além de acompanhar de perto a visão dos quilombolas tenho recebido muitos pequenos produtores rurais em meu gabinete. Acredito que seja possível encontrarmos uma solução”, insiste.

Todos querem o diálogo. Mas esse capítulo da história do Brasil continuará inconcluso até saírem do discurso para a prática.

Mais informações:

Sobre a PEC215
Etapas da Regularização Quilombola

Na Constituição

Textos que tratam de quilombola

Art. 216: § 5º – Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. TÍTULO X – ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.

 

Definições e funções

O portal do Incra na internet explica o que é quilombola. E como suas terras são definidas

As comunidades quilombolas são grupos étnicos – predominantemente constituídos pela população negra rural ou urbana – que se autodefinem a partir das relações com a terra, o parentesco, o território, a ancestralidade, as tradições e práticas culturais próprias. Estima-se que em todo o país existam mais de três mil comunidades quilombolas.

O Decreto nº 4.887, de 20/11/2003, regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A partir do Decreto 4.883/2003, ficou transferida do Ministério da Cultura para o Incra a competência para a delimitação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como a determinação de suas demarcações e titulações.

Conforme o artigo 2º do Decreto 4.887/2003, “consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.

Em 12 de março de 2004 o governo federal lançou o Programa Brasil Quilombola (PBQ) como uma política de Estado para as áreas remanescentes de quilombos. O PBQ abrange um conjunto de ações inseridas nos diversos órgãos governamentais, com suas respectivas previsões de recursos, bem como as responsabilidades de cada órgão e prazos de execução. Dessas ações, a política de regularização é atribuição do Incra.

É a própria comunidade que se autorreconhece “remanescente de quilombo”. O amparo legal é dado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, cujas determinações foram incorporadas à legislação brasileira pelo Decreto Legislativo 143/2002 e Decreto Nº 5.051/2004.

Cabe à Fundação Cultural Palmares emitir uma certidão sobre essa autodefinição. O processo para essa certificação obedece a norma específica desse órgão (portaria da Fundação Cultural Palmares nº 98, de 26/11/2007).

Para acessar a política de regularização de territórios quilombolas, as comunidades devem encaminhar uma declaração na qual se identificam como comunidade remanescente de quilombo à Fundação Cultural Palmares, que expedirá uma Certidão de Autorreconhecimento em nome da mesma.