Alongamento de dívida rural exige critérios técnicos e respeito à legalidade
Por Fernanda Regina Negro de Oliveira Maluf (na foto, à esq.) e Renata Nicodemos, sócias do escritório Ernesto Borges Advogados.
Diante das mudanças econômicas e dos desafios impostos pelo clima e pelas oscilações de mercado, é compreensível que produtores rurais recorram ao alongamento de dívidas como uma estratégia para reorganizar suas finanças e superar dificuldades. Quando utilizado de forma responsável e em conformidade com os critérios legais, esse mecanismo desempenha um papel essencial na preservação das atividades no campo e na promoção da sustentabilidade do setor agropecuário.
Por outro lado, a utilização indiscriminada das regras de alongamento de dívidas compromete a segurança jurídica, distorce o crédito rural e eleva o risco sistêmico no setor financeiro.
As instituições financeiras que atuam no crédito rural vêm enfrentando crescente judicialização de pedidos de alongamento de dívidas por parte de produtores rurais. Alegações genéricas de frustração de safra ou dificuldade financeira têm servido como fundamento para pleitos de prorrogação compulsória de contratos, amparados muitas vezes na equivocada leitura da Súmula 298 do STJ.
É preciso restabelecer os contornos legais e técnicos do tema. A Súmula 298, que afirma que o alongamento da dívida originada de crédito rural “não constitui faculdade da instituição financeira, mas direito do devedor”, baseia-se em uma realidade normativa já superada.
A citada Súmula foi construída com base na Lei 9.138/95, que trata exclusivamente de operações contratadas até 20 de junho de 1995, não havendo, portanto, respaldo legal atual para sua aplicação a contratos firmados nas últimas décadas.
Desde a edição da Resolução CMN 4.905/2021, o Manual de Crédito Rural (MCR 2.6.4) passou a estabelecer que a instituição financeira “está autorizada” a prorrogar a dívida, e não mais obrigada.
Isso significa que o deferimento do pedido está condicionado à análise técnica e discricionária da instituição, observando-se critérios objetivos, como (i) pedido tempestivo, formulado antes do vencimento do contrato; (ii) apresentação de laudo técnico independente que comprove frustração de safra ou evento adverso; (iii) demonstração concreta da capacidade futura de pagamento, mediante cronograma; e (iv) avaliação pela instituição da viabilidade econômica da prorrogação.
Válido esclarecer que quando critérios rigorosos não são aplicados à prorrogação de dívidas, as instituições financeiras se tornam mais cautelosas na concessão de novos créditos. Isso pode dificultar o acesso ao financiamento rural, penalizando especialmente produtores adimplentes que dependem desse recurso para investir na próxima safra.
Não basta, portanto, que o produtor rural apenas alegue o prejuízo ou apresente laudos unilaterais e documentos produzidos exclusivamente para instrução judicial.
A prorrogação não é automática e tampouco universal, ela pressupõe a existência de contrato formalmente enquadrado no Sistema Nacional de Crédito Rural, com recursos vinculados e aplicação comprovada.
Apenas os contratos formalmente enquadrados como crédito rural podem se beneficiar das regras do MCR. Cédulas de crédito contratadas por produtores rurais, mas desvinculadas do sistema oficial de crédito rural, não se submetem a essas normas.
Demandas judiciais que buscam aplicar as normas do crédito rural a operações que não atendem aos critérios legais representam um claro desvio da finalidade contratual. Esses pleitos desvirtuam a lógica dos contratos firmados e comprometem a segurança jurídica, criando distorções que fragilizam o equilíbrio do sistema de crédito rural.
Embora existam mecanismos legítimos e necessários para a renegociação de dívidas como forma de enfrentar adversidades, é fundamental que esses recursos sejam utilizados com responsabilidade e em observância aos critérios técnicos e legais. Quando flexibilizações sem embasamento técnico são aplicadas, o sistema de crédito rural é enfraquecido: mutuários adimplentes acabam prejudicados, a confiança nas instituições financeiras é reduzida, e o acesso ao financiamento para novas safras se torna mais difícil.
A segurança jurídica e o equilíbrio econômico-financeiro do sistema de crédito rural dependem do respeito às regras pactuadas. A flexibilização indiscriminada dos critérios de prorrogação fragiliza a concessão responsável de crédito, penaliza mutuários adimplentes e compromete a sustentabilidade das operações financeiras.
Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça tem reiteradamente reforçado esse entendimento. No julgamento do AgInt no AREsp 2.426.163/MG, a Corte reafirmou que, “apesar de ser direito do devedor, nos termos da Lei 9.138/95, para o alongamento das dívidas originárias de crédito rural é necessário preencher requisitos legais”.
No caso concreto, concluiu-se que a mera produtividade abaixo do esperado não bastava para demonstrar a incapacidade de pagamento. Além disso, destacou que o pedido não atendia à exigência do requerimento administrativo prévio, uma condição essencial para que a instituição financeira analise a viabilidade da prorrogação.
Não se trata de negar amparo ao produtor rural em situação de vulnerabilidade. Ao contrário, é inegável que o agronegócio está sujeito a riscos inerentes, como oscilações de mercado e eventos climáticos adversos, reconhecidos como ferramentas legítimas para mitigar esses impactos. No entanto, tais mecanismos pressupõem a observância de critérios legais e técnicos mínimos, a fim de evitar o desequilíbrio no sistema de crédito rural e preservar a sua sustentabilidade.
A justiça não pode ser instrumento de arbitragem de expectativas unilaterais. Portanto, o respeito às normas, à boa-fé contratual e à comprovação idônea da necessidade são pressupostos inegociáveis para qualquer pedido de alongamento de dívida rural.
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